A pessoa por trás do mito
Anne Frank, a jovem autora de "O diário de Anne Frank" - o mais conhecido documento sobre as atrocidades perpetradas pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial - estava na clandestinidade já há um ano e meio, quando, tentando exprimir o estado de suspensão em que se encontrava, escreveu: "O sol brilha, o céu está muito azul, sopra um vento magnífico e eu anseio tanto - anseio tanto - por tudo... Tenho saudades de conversar, de liberdade, de amigos, de estar sozinha. Tenho tanta saudade... de chorar!" (em "Anne Frank: uma biografia", p. 304).
O livro Anne Frank: uma biografia foi publicado, originalmente, em alemão, com o título de Das Mädchen Anne Frank: die Biographie. Sua autora é a jornalista austríaca Melissa Müller, que mergulhou no passado da alemã-judia Annelies Marie Frank e, após cerca de três anos de meticulosas pesquisas e um trabalho minucioso de investigação, revela, nesta marcante obra, a biografia comovente do símbolo maior de resistência aos horrores nacional-socialistas, na Segunda Grande Guerra.
Anne Frank transformou-se, com o passar dos anos, na vítima mais famosa dos assassinatos de Adolf Hitler, o chanceler do Reich alemão que, formalmente, tinha o domínio total da Alemanha; no entanto, o passado dessa adolescente e inúmeros outros segredos a respeito de sua verdadeira história, de sua prisão por homens do serviço secreto alemão e de sua morte no campo de concentração alemão de Bergen-Belsen eram praticamente desconhecidos e permaneciam um mistério.
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''Anne Frank: Uma Biografia'' |
O que Melissa Müller faz, em seu absorvente livro publicado pela Editora Record (em 2000), é desvendar quem foi a mítica Anne Frank e como eram a personalidade e a vida - antes de se ver obrigada a viver escondida dos nazistas e depois de ser traída e capturada - desta jovem que, mesmo com pouca experiência de vida - ela morreu aos quinze anos de idade, após ter passado quase três anos confinada (primeiro, em um esconderijo e, depois, em campos de concentração) -, foi capaz de deixar escrito um emocionante testemunho de tolerância e de humanidade que a tornou uma das mais conhecidas figuras do século 20.
A autora diz, na Dedicatória, que "Este livro pertence aos sobreviventes" (p. 5). No Prefácio, escrito em Munique, em junho de 1998, ela lembra que o historiador Yehuda Bauer afirmou que "um pesquisador em história é alguém que não apenas analisa a história, mas também conta histórias verdadeiras" (p. 14). E, um mês antes de completar quinze anos, Anne Frank escreveu, no seu diário: "Enquanto toda a humanidade sem exceção não passar por uma grande metamorfose, a guerra vai grassar, tudo que é construído, criado e cultivado, será cortado e exterminado de novo, para em seguida começar outra vez!" (p. 14).
Disse Voltaire que "a história não se repete", entretanto o ser humano faz a história se repetir: desde o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, houve, no mundo inteiro, exatamente apenas quatro dias nos quais não foi desencadeada uma guerra, em algum lugar do planeta Terra! Destarte, Müller procurou narrar a história de Anne Frank, de sua família e do seu círculo de amigos de tal forma que o maior número possível de pessoas a lesse e "com a esperança de que, se possível, muitas delas se inteirassem dos crimes inconcebíveis que o regime nazista praticou, se inteirassem dos fatos históricos e das causas sociais sobre cujo pano de fundo pôde ocorrer o massacre, tomando assim consciência de sua responsabilidade" (p. 14).
A obra em questão, após a Dedicatória e o Prefácio, está dividida em dez capítulos, depois dos quais possui um Epílogo em biografia, um Posfácio de Miep Gies (escrito em Amsterdã, em janeiro de 1998), um Agradecimento e um Anexo contendo: Quadro cronológico (de 3 de julho de 1869 a 14 agosto de 1945), Árvore genealógica (das famílias Frank e Holländer), Fontes, Bibliografia e Índice Onomástico.
O primeiro capítulo conta como se deu a prisão, pelos alemães, de Anne Frank e das outras sete pessoas (inclusive sua irmã e seus pais) que, juntamente, com ela, dividiam, há dois anos e um mês, um refúgio em uma casa nos fundos do prédio onde funcionava a firma de Otto Heinrich Frank, pai de Anne, em Amsterdã, na Holanda, cidade para a qual a família Frank havia ido, ao fugir da Alemanha.
Do capítulo 2 até o 7, é narrada a vida de Anne, desde o momento de seu nascimento, em Frankfurt am Main, na Alemanha, em 12 de junho de 1929, até o dia (6 de julho de 1942) em que, com a sua família, teve de ir esconder-se nos "aposentos que estavam vazios no anexo atrás do escritório" (p. 187) da empresa de Otto Frank.
Menos de um mês antes, quando completara treze anos, Anne recebera de presente de seu pai um "pequeno livro, quase quadrado, encadernado num tecido de linho bruto, enxadrezado em vermelho e delicado verde-claro. Na quarta capa, uma peça curva de tecido com uma estreita tranca de metal que se encaixava na parte da frente como um botão de pressão num pequeno fecho... " (p. 167). Na verdade, era um álbum de poesias, todavia como que confeccionado para ser um diário íntimo, e, para aquela menina-moça que gostava tanto de escrever, tornou-se um bom amigo, com quem ela pôde compartilhar suas intimidades - e também algumas futilidades - e conservar seus pensamentos, seus ideais e suas fantasias.
O capítulo 8 mostra como era o dia-a-dia dos oito clandestinos, no esconderijo da "casa dos fundos", e o 9 lembra os últimos sete meses de vida de Anne Frank, primeiramente no campo de passagem de Westerbork, na Holanda, depois no campo da morte de Auschwitz-Birkenau, na Alemanha, e por fim no campo de Bergen-Belsen local onde, "em algum momento entre o fim de fevereiro e meados de março de 1945" (p. 303), o corpo enfraquecido de Anne, atingido por uma epidemia de tifo, capitulou.
O décimo e último capítulo fala dos anseios de Anne, que queria "ter diversão e rir até dar dor na barriga... andar de bicicleta, dançar, namorar e sei-mais-lá-o-quê" e tinha "uma necessidade terrível de ficar sozinha" (p. 305); que, embora quisesse casar e ter filhos, "pretendia levar uma vida diferente de outras meninas e, mais tarde, uma vida diferente das donas-de-casa normais" e que registrou: "Oh, sim, não quero ter vivido para nada como a maioria dos homens. Quero ser de utilidade e alegria para as pessoas que vivem à minha volta e que não me conhecem... E por isso sou tão grata a Deus porque me concedeu já no nascimento uma possibilidade de me desenvolver e de escrever..."" (p. 307).
No Epílogo em biografia, Müller revela a vida dos parentes e amigos de Anne Frank, desde o dia em que ela se refugiou na "casa dos fundos" até o ano de 1998. No Posfácio de Miep Gies, a antiga primeira assistente de escritório de Otto Frank que pôde salvar o diário de Anne diz que este "dá esperança a milhões de pessoas no mundo inteiro e faz um apelo para mais compreensão e respeito" e que "Anne continua realmente a viver através de seu diário. Ela responde pela vitória do espírito sobre o mal e a morte." (p. 348).
E no Agradecimento, a autora Melissa Muller registra sua gratidão às várias testemunhas da época - que nunca haviam sido consultadas -, parentes e amigos da família Frank que lhe concederam permissão para olhar cartas, fotografias e outros documentos inéditos, "em parte bastante privados e que nunca antes tinham sido tornados acessíveis ao público" (p. 349).
"Anne Frank: uma biografia" é uma obra bem apresentada, em uma forma precisa e clara. Há um Sumário; um pouco após a primeira metade da obra, várias fotos em preto e branco de Anne Frank, seus parentes e amigos, bem como de outros documentos; e, na capa, uma bonita fotografia de Anne. Vale a pena ser lido!